Em 2021, uma crise hídrica fez surgir um sinal amarelo no cenário do fornecimento de energia elétrica no Brasil. Na primeira semana de novembro de 2023, uma tempestade atingiu a região metropolitana de São Paulo. Ventos superiores a 100 km/h derrubaram árvores, que atingiram a fiação, deixando 3,7 milhões de consumidores sem energia elétrica. Os danos foram tão grandes que 24 horas depois, mais de dois milhões de pessoas ainda estavam no escuro. No início do ano, novas chuvas levaram a capital paulista a enfrentar problemas de abastecimento, desta vez na região central.
Em maio deste ano, fortes chuvas atingiram mais de 400 municípios gaúchos, causando centenas de mortes, deixando milhares de gaúchos desabrigados e provocando prejuízos de mais de R$ 1 bilhão na destruição de ativos do setor elétrico . Uma linha de transmissão, cuja fundação é sustentada por torres de concreto e metal, foi retirada do solo devido às forças do vento e da água.
Nos Estados Unidos, no início de março, em sua tradicional carta aos investidores, o megainvestidor Warren Buffet alertou que o conglomerado Berkshire Hathaway seria cauteloso ao colocar dinheiro novo na PacifiCorp, uma concessionária norte-americana que opera em seis estados do país, como Oregon e Califórnia. A gigante está sendo processada pelo governo e pelos consumidores dos Estados Unidos devido aos incêndios de 2020 que destruíram milhares de casas e queimaram mais de 200 mil hectares de terras no estado de Oregon. As vítimas do incêndio pediram mais de 7 mil milhões de dólares de indemnização, alegando que a concessionária não agiu como deveria para controlar o incêndio.
O cenário de mudanças climáticas tem feito com que as concessionárias de distribuição, geração e transmissão busquem cada vez mais inovações com o objetivo de se prepararem para eventos extremos, aumentando a resiliência das operações e compreendendo possíveis impactos na operação e gestão dos ativos. Além do uso de inteligência artificial e de modelos para entender esses impactos, as empresas discutem a padronização tecnológica e as regulamentações que devem acompanhar os desenvolvimentos. O desafio é encontrar formas de estes investimentos compensarem e não aumentarem demasiado as contas de electricidade.
Elo mais próximo de 200 milhões de brasileiros, as distribuidoras atuam em diversas frentes. No final de julho, foi organizada uma missão aos Estados Unidos para visitar operações em Denver, Califórnia e Washington, com o objetivo de monitorizar a digitalização e a resiliência das redes. A Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) também está prestes a contratar um projeto de pesquisa e desenvolvimento que avaliará as melhores práticas que podem ser aplicadas no Brasil para resiliência e antecipação de medidas. A ideia é também avaliar como a estrutura tarifária poderia suportar esses potenciais investimentos, afirma Lindemberg Reis, gerente de planejamento e inteligência de mercado da Associação Brasileira de Energia Elétrica (Abradee).
As consultorias regulatórias também têm trabalhado em estreita colaboração com empresas do setor. O Centro de Estudos de Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceri) desenvolveu diversas ferramentas para projetos na área. “A resiliência é um tema importante para as empresas, porque elas buscam avaliar os possíveis impactos que podem ocorrer devido às mudanças climáticas, quais investimentos podem ser feitos para se protegerem e quais investimentos têm uma relação risco e retorno adequada. Então desenvolvemos uma ferramenta que permite avaliar essa relação para cada conjunto elétrico de uma área de concessão”, afirma Joisa Dutra, diretora da FGV Ceri.
Foi também criado um Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), que leva em conta a resiliência e dados sociais e ambientais em relação à descarbonização e aos efeitos das alterações climáticas. São avaliadas três dimensões: preparação da comunidade, saúde e evacuação das pessoas. “Isto, por exemplo, permite-nos dar materialidade, mostrar se os investimentos realizados estão a reduzir a pobreza energética e se a transição energética procura realmente a justiça social, ou se a maioria dos investimentos está a ficar nas zonas mais ricas de uma sociedade”, disse. diz. .
A busca por inovações também está chegando às empresas de meteorologia, que estão envolvidas em diversos projetos de pesquisa e desenvolvimento no setor. “A inteligência artificial nos permite trabalhar com uma base de dados muito maior e buscar reproduzir cenários possíveis”, afirma Gilca Palma, diretora de produtos da Climatempo. “A recorrência dos efeitos climáticos aumentou e isso criou um sinal de alerta. Portanto, existem vários projetos em fase de conclusão ou a serem iniciados, desde métodos de análise de vazão fluvial até modelos de previsão de geração fotovoltaica”, afirma Luiz Fernando dos Santos, da Tempo OK.
Mas a tarefa não é simples. A maior parte das linhas de transmissão que transportam energia elétrica nas regiões Sul e Sudeste foram construídas entre as décadas de 1960 e 1980, quando o sistema era predominantemente hidrelétrico e as usinas com reservatórios ficavam próximas ao maior centro consumidor do país. Hoje, as energias eólica e solar já representam mais de 20% da eletricidade. As hidrelétricas da região Norte transportam, por meio de milhares de quilômetros de linhas, energia dos rios Xingu e Madeira para o Sudeste. A geração distribuída (GD) solar faz com que mais de 2,5 milhões de usuários respondam por cerca de 25% da carga consumida no início da tarde. Este é um contexto que traz complexidade num momento em que as alterações climáticas apontam para cenários mais extremos, como a possibilidade de ventos mais fortes, incêndios e raios, e levam o setor a debater soluções para enfrentar os desafios.
Em outubro, a Associação Brasileira de Transmissoras de Energia (Abrate) realizará, em parceria com governo e fabricantes de equipamentos e construtoras, um seminário que discutirá normas técnicas para empreendimentos já construídos e a serem construídos. A ideia é estabelecer um diálogo sobre evolução dos equipamentos, segurança cibernética e mudanças climáticas e buscar um padrão para os projetos. “O sistema é muito mais complexo. No Acre, hoje, são observados ventos de mais de 100 km por hora. O desafio é inovar e incorporar essas inovações para que a conta não fique muito pesada”, afirma o presidente da entidade, Mario Miranda. Ao mesmo tempo, as emissoras trabalham para lançar uma chamada pública de inovação destinada a estudar os efeitos das alterações climáticas no sector, com a intenção de analisar o que pode ser feito. “A inteligência artificial e a realidade aumentada são ferramentas que podem ajudar, e também queremos ver a viabilidade técnico-econômica do que pode ser feito”, afirma Marcus Nascimento, diretor do Instituto Abrate.
“Os efeitos adversos das alterações climáticas exigem ativos e redes mais resilientes. A nova anormalidade climática já chegou. Os eventos climáticos extremos que o país sofreu em 2023, como a seca extrema na Amazônia, temperaturas recordes, vendavais na região de São Paulo e enchentes na região Sul, não são um ‘soluço’, causado por exemplo por um forte El Niño, e sim devido à nova anormalidade climática. Esta é uma constatação factual da World Weather Attribution, uma colaboração acadêmica global que estuda a atribuição de eventos extremos, cálculos do impacto das mudanças climáticas em eventos meteorológicos extremos, como ondas de calor, secas e tempestades”, observa o presidente do PSR, Luiz Augusto Barroso.
O impacto deverá recair também nas vendas de energia e na gestão de riscos, uma vez que os extremos aumentam os fluxos e podem interferir nos regimes de vento ou de irradiação, relata o especialista. “Eles também precisarão se adaptar. Se quisermos ser mais conservadores, isso dependerá da frequência, magnitude e direção dos impactos e da capacidade dos agentes e do sistema para gerir o novo perfil de risco. Por exemplo, uma maior volatilidade dos preços cria oportunidades de comercialização, mais riscos e mais responsabilidade para o sistema, que precisará criar mecanismos para garantir a segurança do mercado”, afirma Barroso.
As novas tecnologias também trouxeram desafios ao setor elétrico. No momento, um dos maiores é o impacto que as baterias de armazenamento de energia poderão ter nas operações de distribuidoras, transmissoras e geradoras. Na Califórnia, em alguns horários do dia, eles já podem responder por mais de 10% da eletricidade. “Podem ter múltiplas funções: melhorar a qualidade do fornecimento sem investir em novas linhas; auxiliar no controle de tensão, reduzindo o consumo em momentos de alto consumo de energia; pode desempenhar um papel ao lado das fontes variáveis”, afirma Alexei Vivan, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Energia Elétrica (ABCE). Além do custo, que está em níveis elevados, o progresso está ligado à regulação, que ainda é inexistente.
O hidrogênio verde, que surge como potencial combustível de descarbonização e teve seu marco regulatório aprovado no Brasil em julho, também atrai interesse de projetos de pesquisa e desenvolvimento. Com capacidade de gerar energia renovável 24 horas por dia, sete dias por semana, o Brasil pode ganhar terreno se a tecnologia conseguir superar barreiras globais, como custo, transporte e certificação. Em março, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) abriu chamada pública estratégica para o desenvolvimento de projetos de pesquisa e inovação em hidrogênio verde.
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